quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Quando chegar a hora

Imagem by William Adolphe Bouguereau
Postei certa vez sobre as palavras belamente cativantes das poesias de Olavo Bilac. Em um dos comentários, Kátia acabou por deixar um outro trecho de uma poesia de Bilac. Era um fragmento de “In Extremis”, um texto que agora coloco aqui na íntegra. Ele fala de declarações de alguém que vai morrer à amada que o perderá. Acho muito intrigante e envolvente o tom de anúncio que a escrita tem. Muito boa.

In extremis (Olavo Bilac)

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! De um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! Postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! De um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! E este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
A arredar-me de ti, cada vez mais a morte...

Eu com o frio a crescer no coração, — tão cheio
De ti, até no horror do verdadeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!

E eu morrendo! E eu morrendo,
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! A delícia da vida!

Associei então essa morte à um outro texto sobre despedida de quem se ama. Diferente. Dessa vez o texto ganhou vida e identidade perfeita! Musicada na voz de Elis Regina, a letra de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, para “Lapinha”, traz um clima muito festivo a um evento tido como obscuro e indesejável.Gravada em 1988, do disco “Fascinação”, Lapinha é uma versão diferente do texto de Bilac.


Lapinha (Baden Powell / Paulo César Pinheiro)

Quando eu morrer me enterre na Lapinha,
Quando eu morrer me enterre na Lapinha
Calça, culote, palitó almofadinha
Vai meu lamento vai contar
Toda tristeza de viver
Ai a verdade sempre trai
E às vezes traz um mal a mais
Ai só me fez dilacerar
Ver tanta gente se entregar
Mas não me conformei
Indo contra lei
Sei que não me arrependi
Tenho um pedido só
Último talvez, antes de partir

Quando eu morrer me enterre na Lapinha,
Quando eu morrer me enterre na Lapinha
Calça, culote, palitó almofadinha
Sai minha mágoa
Sai de mim
Há tanto coração ruim
Ai é tão desesperador
O amor perder do desamor
Ah tanto erro eu vi, lutei
E como perdedor gritei
Que eu sou um homem só
Sem saber mudar
Nunca mais vou lastimar
Tenho um pedido só
Último talvez, antes de partir

Quando eu morrer me enterre na Lapinha,
Quando eu morrer me enterre na Lapinha
Calça, culote, palitó almofadinha
Calça, culote, palitó almofadinha
Adeus Bahia, zum-zum-zum
Cordão de ouro
Eu vou partir porque mataram meu besouro




:-]

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dos 3

Dos heterônimos de Fernando Pessoa, o que mais me agrada é Álvaros de Campos. Seu romantismo ligado ao moderno e uma visão mais sóbria das coisas terminam por dar um tom de atualidade às escritas.
Tive meus primeiros contatos com seu autor, Pessoa, nas primeiras séries da escola e achei realmente intrigante "um cara ser ele e mais três ao mesmo tempo". Coisas da arte escrita...
Como costumo dizer, nem sempre é necessário tentar entender muito, apenas se alimentar, sentir, vivenciar...
Transcrevo aqui um poema conhecido, dessa figura, Campos, que mais adimiro das três. Fala de uma necessidade: a de amar, mesmo que seja ridículo.
Mas antes, amor.




Todas as cartas de amor são ridículas
Álvaro de Campos (21/10/1935)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente, Ridículas.)

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ilustrações de José Sobral de Almada Negreiros, "homem de muitas artes", português (1893-1970)