sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Caio F. e Elis Regina

Ainda sobre o livro "Para sempre teu, Caio F." (escrito por Paula Dip e sobre o qual postei a primeira vez aqui), achei citações lindas a respeito de Elis Regina (*17/03/1945 +19/01/1982). Caio foi conterrâneo dela, na adolescência (inveja!).


(sobre esta foto, onde Caio aparece observando Elis ao violão, tirada em Porto Alegre nos anos 60, Elis escreveu atrás: "Você saiu bem, eu mal. Vou acabar me convencendo de que sou horrorosa.")

Em 1982, após a morte de Elis, Caio F. declarou:

“Colaborei com a seção de literatura da Veja durante cerca de quatro anos. E pedi demissão quando morreu Elis Regina. Imagino que todo mundo lembre da capa da Veja na época. “Elis Regina, a tragédia da cocaína” – onde tratavam Elis como uma viciada irrecuperável. Coisa de gente não só careta como também mau-caráter. Liguei para o editor de literatura e disse: ‘Por favor, vá dizer ao seu patrão que não quero nunca mais ver meu nome numa revista desse nível.'"

Caio conhecia Elis dos tempos de adolescente, em Porto Alegre, e a chamava de maninha. Em sua homenagem, escreve uma crônica e a endereça a Paula Dip:

“Maninha, precisava ser agora?
Eis, quando eu soube, assim de imediato, não acreditei. Esse vício de eternidade que a gente tem. E logo você, bicho? Tão agitadinha, tão atrevidinha e cheia de vida. Fui ao banheiro lavar o rosto, molhar os pulsos e olhar bem a minha cara cansada de 33 anos. Quando saí e espiei em volta tudo continuava lá. Feito nada tivesse acontecido Lembrei duma história da mitologia grega. Contam que quando morreu Pan, o deus da música, alguns pescadores ouviram uma voz misteriosa gritar numa praia deserta: ‘O grande deus Pan morreu!” E nunca mais se ouviu falar dele. Hélice – como te chamava a Rita, acho que por causa daquela sua mania antiga de girar os braços enquanto cantava, em tempos de Arrastão – eu não sei o que estou sentindo. Depois do trabalho, saí a procurar pelas ruas do centro da cidade um sinal qualquer que confirmasse ou desmentisse tua partida. Não encontrei nada. As lojas não tocavam seus discos. Ninguém caminhava devagar. Não havia nenhuma melancolia específica no céu, além do cinza habitual. Só eu assobiava baixinho “Acender as velas já é profissão, quando não tem samba, tem desilusão”. (Vezenquando, só de sacanagem, você dizia ‘Quando não sou eu, é Nara Leão’, e dava aquela risada gostosa.) Então peguei um táxi e vim embora. Pedi para o motorista ligar o rádio, mas tocava Núbia Lafaiete. Você acharia engraçado. Pedi para ele parar antes de casa, comprei duas garrafas de vinho. Estou no meio da segunda. Pimentinha, que difícil que tá. Você tem que amar quem você ama agora, JÁ, você tem que começar a fazer tudo o que você quer porque a bruxa tá do lado esperando. Elis, eu também vou morrer nem sei quando. Antes eu queria tanto ser feliz. Embora nem saiba como é isso. Acendo uma vela branca procê ir embora numa boa. Abro as janelas e ponho bem alto você cantando ‘Primeiro Jornal’, porque é assim que quero te guardar, juntando tua voz matinal aos restos dos sons noturnos que ainda boiam na casa. Não tenho medo da morte. Tenho medo da vida. Baixinha, foi tão de repente... Mas ainda ontem, todo domingo de manhã eu ia ao cinema Castelo assistir você cantando no programa do Maurício Sobrinho, da Rádio Gaúcha. Você vinha com aqueles vestidos repolhudos cantar ‘Banho de lua’ e aquelas versões tipo Fred Jorge (Vixe, como tô ficando veio, guria!). No fim todo mundo aplaudia de pé, dançava e cantava junto. Depois, feito a Janis Joplin fez com Port Arthur, você saiu de Porto Alegre. Foi ser estrela na vida. Falavam mal, então como falavam: porque isso, porque aquilo, porque você chiava como carioca, que era metida que nem parecia ter saído dali do Partenon, que parecia que tinha Deus na barriga (descobri depois que você tinha mesmo, não na barriga, mas na voz). Nunca mais te vi ao vivo, só no finzinho do ano passado, no Anhembi. De repente você disse que queria falar com Deus. Eu me arrepiei. Parecido com quando você cantava ‘Atrás da porta’. Ou quando, naquele inverno comprido eu atravessava noites bebendo conhaque ouvindo ‘As aparências enganam’. Uma vez a Paula Dip bateu na porta enquanto você cantava e, mal abri, ela caiu no choro, porque tinha vindo contar-me coisas sobre esses enganos, essas aparências.
Maninha, precisava ser agora? Em pleno verão, o sol quase em Aquário. Sei que teu coração não aguentava mais tanta barra. Sacanagem... E juro que agora eu ouvi você rindo assim: quá-quá-rá-quá-quá. Tô sentindo um oco, Hélice. Tão ruim. O dia não conseguiu chover: eu queria agora chorar todo o choro que o dia não chorou por ti. Não consigo. Eu tenho a impressão de que poderia reconstituir, dias após dia, desde uma daquelas manhãs de domingo no Cine Castelo (que coisa mágica, eu tinha 12 anos, você 15) até estas duas da madrugada de hoje? Consigo não, Che. A gente, que é gaúcho, se entende. O tempo existe, Pimentinha, e passa, leva no arrastão as coisas e as pessoas que não morrem: ficam encantadas. Y solo resta el silencio, un ondulado silencio...
Nós te amávamos tanto, tanto. Guria. Até.

Caio Fernando Abreu"

A escritora do livro, Paula Dip, ainda acrescenta uma experiência sua, com relação à partida de Elis, quando foi fazer uma matéria de cobertura:

“[...]com naturalidade das pessoas acostumadas àquele tipo de trabalho, Shibata [Harry Shibata, médico] – que era considerado conivente com a tortura no governo militar – demorou para me passar o laudo, mas fez questão de exibir fotos de Elis, sobre a mesa de necrópsia, com um corte vertical do queixo à pelve, fechado por grampos de metal.
Eu nunca havia visto nada parecido. Foi horrível ter a maior cantora do Brasil tão exposta e indefesa. Tinha apenas 36 anos.”


(nesta imagem, Caio F. e Paula Dip, amigos também de trabalho, aparecem em fotos trocadas, tiradas por eles mesmos, em meio a uma pausa)

[O Livro: Para sempre teu, Caio F. Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu. 2009. Editora Record]

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Caixa de correio

“A gente não deve permitir que as cartas se tornem obsoletas, mesmo que, talvez, já tenham se tornado.”



A frase é de Caio Fernando Abreu, ou Caio F., como gostava de assinar. Além de ter o jornalismo como profissão (fez parte da primeira equipe da revista Veja, em 1969), Caio teve na literatura uma paixão de vida. Além disso, adorava escrever cartas aos seus queridos. Bilhetes, memorandos, páginas e páginas quase sempre datilografadas.
Após sua morte, em fevereiro de 1996 (nasceu em 1948), uma grande amiga sua, Paula Dip (também colega de profissão), reuniu cartas e memórias deixadas por Caio F. e as transformou em um belo livro.



O meu exemplar de "Para sempre teu, Caio F.", ganhei da amiga Clélia Riquino, com quem adquiri o hábito de trocar diversos e-mails, que tinham o mesmo efeito de cartas pelo correio. A cada mensagem, um registro a cerca de alguma obra sabida/lida/conferida/indicada, ou sobre o clima/tempo em casa, sobre algum fato, ou, ainda e simplesmente, sobre como estava o dia de cada um. Assim foi que Clélia me deu esse presentão, sobretudo, para mim, que gosto do envio de cartas pelo correio. O livro é, mesmo, interessante. De carta em carta (enviada por Caio e também recebida de seus amigos, admiradores, próximos e etc) vai se conhecendo muito dele, e também da época em que ele vivia, dos amores, dos cheiros, sentimentos e climas encontrados nas cidades. Nesta hora, é como se o leitor recebesse as cartas trocadas em sua caixa de correio e se intera de uma época que pode até ter vivido, mas não sob tal visão/ponto de vista.

Hoje em dia, quem envia cartas a amigos pelo correio é tido como "cult", "retrô", ou antigo, atrasado, anti-tecnologia...

Quando foi a última vez que você endereçou a alguém uma carta pelo correio??